Poemas de João Guimarães

Mil Escudos

6A23742907
Mil Escudos
ch.12
         Lisboa, 6 de Fevereiro de 1992

Podia jurar que já tive esta nota na
mão gostava mais das de cem (Bocage
sempre era poeta) um de nós nunca
esquecia bigodes e cicatrizes sobre
O seu carão moreno assinando o curto
nome pelo banco de Portugal nomeando
nosso Bocage governador por uns dias.
A nota de mil amanhã será como a
tangerina (há tanto tempo na terrina
caiu na classe dos frutos secos).
Vem aí outro dinheiro (aposto: vai
ser azul) guardo esta nota antiga na
caixa da ilusão esta nota é um país
em vias de extinção

João Luís Barreto Guimarães,

in «Este Lado para Cima»

As Empregadas Fabris

Arregaçam a manhã (as empregadas fabris)
pernas como tesouras recortando a calçada
ferem o lenho da mesa com sortes de boletim.

Uma sirene as trouxe aqui (às empregadas febris)
ancas de esboço perfeito sob vestes de operária
tocam umas nas outras como inda fossem meninas.

Mas a delas que vai noivar já traz o primeiro a caminho
E quando o cigarro se apaga (ou a cerveja se escoa) o
que resta é a dor da tarde que nem esta chuva afaga

O gasóleo dos rapazes que lhes cantam a cantiga e
as tomam pela cintura. Um foguete fecha a festa
(pelo lado de dentro da coxa) há nelas a incerteza de
não saberem se são incompletamente infelizes.

João Luís Barreto Guimarães,

in «Rés-do-Chão»

Decepção à Regra

Sentar-me e
ver os outros passar é o
meu exercício favorito. Entretém.
Não esgota.
É gratuito. Neste meu jogo-do-não
são os outros que passam
(é aos outros que reservo a tarefa
de passar). Lavo daí os pés.
Escrevo de dentro da vida.
Pode até parecer que assim não
chego a lugar algum mas também quem
é que quer ir ao sítio dos outros?

 João Luís Barreto Guimarães

Acto de Contrição

Pela luz rara da garagem dois vultos
vão pôr o lixo. São velhos desconhecidos. 
Um ao outro dão passagem 
(a máscara de um cumprimento) esquivos na
escatológica arqueologia das misérias.
Homens de lixo na mão: exímios
a ocultar versos da vida doméstica (quando
o gesto liso cabe ao avental abundante que os
devolve a casa). 
Há em todo esse agravo uma redenção ferida
(um juízo resolvido) como que um indulto lento.

João Luís Barreto Guimarães

Sol de Janeiro

Nunca tanto como hoje

reparei com atenção

na luz do sol de Janeiro.

Forte, mas delicada.

Furtiva, mas demorada.

Não arde nem faz tremer.

Não é densa nem clara.

A luz do sol em Janeiro:

assim é o nosso amor

oculto pela tinta dos dias apenas

espreita uma aberta

(uma distração das nuvens)

para luzir e irromper

(nunca antes como hoje precisei)

tanto que o vento lhe desse oportunidade).

O nosso amor é Janeiro:

mesmo se o julgo esquecido

sei que está sempre lá.

João Luís Barreto Guimarães,

in «Rés-do-chão»

Falsa Partida

Ainda estranho o lugar quando acordamos
no revés de já ser outro o dia
porque espelhas o tempo à janela
é à face de teu rosto que decido
o que vestir.
O vento que molda a praia
é de todas as bandeiras:
há um silêncio talhado à substância do quarto
(o chão de madeira matiza o
frio que força uma fresta)
podia apostar comigo: hoje de madrugada
um cão ladrou na voz do galo.
O meu sobrenome segue-te
pela véspera da casa
(fim de emissão no ecrã cálices
meio hasteados) a chuva desistiu de apagar
o nosso amor embaciado pelo lado negativo.
Tornas à cama e abres aquele romance de sempre
(o descanso existe noutro cansaço).

  in «Poesia Reunida»