Marcos Portugal foi o mais famoso e prolífico compositor luso-brasileiro de todos os tempos; foi também o autor do primeiro hino nacional de Portugal (1809) e do Brasil (1822). Pesquisas e estudos recentes estabeleceram a importância e influência da sua vasta obra dramática e religiosa no contexto europeu e luso-brasileiro.
Marcos António da Fonseca Portugal (Lisboa, 24 de Março de 1762 – Rio de Janeiro, 17 de Fevereiro de 1830), organista, maestro e compositor (mais de 70 obras dramáticas, incluindo cerca de 40 óperas, e mais de 180 obras religiosas), conheceu um sucesso nacional e internacional sem paralelo na história da música luso-brasileira, com milhares de representações operáticas em Itália e em muitos teatros europeus. Em Portugal e no Brasil, no entanto, a sua fama de compositor alicerçou-se primordialmente no género sacro: algumas das suas obras mantiveram-se no repertório das igrejas e capelas até inícios do século XX, nomeadamente a Missa Grande (c. 1782-1790; MarP 01.09), as Matinas da Conceição (1802; MarP 03.05) e o Grande Te Deum (1802; MarP 04.08).
Foi aluno do Seminário da Patriarcal de Lisboa a partir dos 9 anos, onde estudou com João de Sousa Carvalho. De acordo com uma relação de obras publicada por Manuel de Araújo Porto-alegre a partir do original autógrafo (Revista Trimensal do Instituto Historico Geographico e Etnographico do Brasil, 1859), a primeira apresentação pública do compositor Marcos António (como era conhecido no início de carreira) deu-se na Santa Igreja Patriarcal em 1780. Nessa instituição foi admitido como organista em Agosto de 1782 com o salário de 12$500 réis mensais e, a partir de 1 de Setembro de 1787, também formalmente como compositor, com um aumento de 50$000 réis anuais. No ano de 1782 recebe uma encomenda da rainha D. Maria I, uma Missa com instrumental para a festividade de S. Bárbara. Este evento estabeleceu o início do seu relacionamento com a família real, e sobretudo com D. João, marcando decisivamente o seu percurso profissional e estético.
Até 1792, e depois de ter sido admitido na Irmandade da S. Cecília a 23 de Julho de 1783, acumulou o emprego atrás referido com o de Mestre de Música do Teatro do Salitre (a partir de c. 1784) para o qual compôs entremezes, elogios (para celebrar aniversários reais), e farsas em português. Uma parte das modinhas que compôs neste período viria a ser publicada no Jornal de Modinhas (1792-1795).
O agravar da doença da rainha D. Maria I e o início da efectiva regência do príncipe D. João precedem de cerca de 6 meses a partida do compositor para Itália, onde em apenas 6 anos e meio estreou pelo menos 21 óperas, a maior parte delas do género cómico. O sucesso de óperas como La confusione della somiglianza (1793), Lo spazzacamino principe (1794), ou La donna di genio volubile (1796) foi imenso, e naturalmente extravasou para o resto da Europa, com representações em Viena, Paris, Londres, Dublin, São Petersburgo, Berlim, Dresden, Hamburgo, Hannover, Leipzig, Nuremberga, Corfu, Barcelona, Madrid, Lisboa, Porto... Marco Portogallo (como ficou conhecido no estrangeiro) tornou-se figura da vanguarda do movimento operático italiano, ombreando com Giovanni Paisiello (1740-1816) e Domenico Cimarosa (1749-1801), e abrindo os caminhos que seriam mais tarde trilhados por Gioachino Rossini (1792-1868).
De volta a Lisboa em meados de 1800, é nomeado Mestre de Solfa do Seminário da Patriarcal e Maestro no Real Teatro de S. Carlos, onde compõe 12 opere serie, 10 delas com papéis principais para a prima donna Angelica Catalani que, depois de deixar Lisboa, continuaria cantando as óperas de Marco Portogallo (nomeadamente La morte di Semiramide), e incluindo sempre algumas árias nos seus recitais (Son Regina tornou-se a mais conhecida). A única opera buffa escrita para o Teatro de S. Carlos foi L’oro non compra amore (1804) composta para Elisabetta Gafforini.
Depois da partida de Catalani, em inícios de 1806, e do falhanço da conspiração palaciana em que esteve envolvida D. Carlota Joaquina, o príncipe regente passou a residir no Palácio/Convento de Mafra, que se tornou no centro da actividade musical do reino. Até Novembro de 1807 registou-se uma concentração inusitada de organistas, cantores, copistas, organeiros, estampilhadores e compositores, responsáveis por uma produção musical extraordinária. Marcos Portugal compôs cerca de 25 obras religiosas para as vozes dos monges arrábidos, e para o conjunto único de 6 órgãos da Basílica.
As invasões francesas tiveram como consequência imediata a partida da Corte para o Rio de Janeiro a 29 de Novembro de 1807, onde o príncipe regente decidiu organizar a música de acordo com os moldes existentes em Lisboa, nomeando para Mestre da Capela Real o Padre José Maurício Nunes Garcia (1767-1830), e mandando vir cantores e instrumentistas, que começaram a chegar em 1809. A 7 de Janeiro de 1811 Marcos Portugal foi convocado individualmente (e com carácter de urgência) por D. João, chegando ao Rio de Janeiro a 11 de Junho desse ano. Foi imediatamente nomeado Mestre de Suas Altezas Reais com o salário de 480$000 réis anuais, mantendo o seu salário de 600$000 réis como mestre do Seminário da Patriarcal, e incumbido de compor a música para as ocasiões de maior significado religioso, social ou político, quando o príncipe regente, mais tarde rei D. João VI, estivesse presente. As suas funções seriam complementares às do Padre José Maurício, responsável pela organização da música na Capela Real para as muitas festividades ao longo do ano litúrgico. Marcos Portugal tornou-se Director Musical da Corte e passou a ser figura chave na estratégia de representação do Poder Real urdida por D. João, e responsável por um estilo de música adequado à encenação que envolvia as suas aparições públicas. O compositor escrevia específica e individualmente para as magníficas vozes ao seu dispor, entre elas 8 castrati (5 contratados em 1816 e 1817), tão do agrado do soberano, e ingrediente fundamental da imagem sonora pretendida. A Capela Real era o palco privilegiado para as aparições públicas do monarca, e não surpreende que a vasta produção de Marcos Portugal neste período seja quase exclusivamente dedicada à música religiosa. As três excepções são a farsa A saloia namorada, cantada na Quinta da Boa Vista (1812), a serenata Augurio di felicità, para celebrar as bodas de D. Pedro e de D. Leopoldina (1817), e o Hino para a Feliz Aclamação de D. João VI (1818). Pelos seus «bons serviços» Marcos Portugal recebeu a Comenda da Ordem de Cristo por decreto de 12 de Outubro de 1820, data de aniversário do Príncipe D. Pedro.
A situação dos músicos alterou-se radicalmente com o regresso da Corte para Portugal, e a subsequente Independência do Brasil em 1822. Não só regressaram muitos dos músicos ao serviço do rei de Portugal (mas não os castrati), como os cortes orçamentais implicaram a diminuição do número das cerimónias de gala na Capela Imperial. A importância estratégica que a música de Marcos tinha tido perdeu-se. A música do seu aluno D. Pedro, primeiro Imperador do Brasil e também D. Pedro IV de Portugal, substituiu a música do mestre em todas as ocasiões de maior significado político e social. As duas mais significativas obras deste período são o Hino da Independência do Brasil e a Missa Breve, composta «Por Ordem de Sua Magestade Imperial» em Dezembro de 1824, altura em que foi confirmado como mestre de música de Suas Altezas Imperiais, com o salário de 480$000 réis anuais.
Não deixou descendência, mas Maria Joana, sua esposa desde 26 de Maio de 1784, continuou a viver no Rio de Janeiro, assim como o seu irmão, o organista e compositor Simão Portugal (1774-1842).
António Jorge Marques
Comentários recentes